quarta-feira, 30 de abril de 2008

Sobre a memória

"Certa vez li, ou escrevi, não consigo lembrar agora, uma história sobre uma mulher que decide esquecer. Essa mulher vive sozinha numa casa com rosas no papel de parede e tem sido infeliz no amor, é velha e, portanto, um certo dia, decide simplesmente esquecer as rosas do papel de parede. Depois disso, decide esquecer a xícara de café que está segurando, depois a mão que a segura, depois as pernas que a movem pelo mundo solitário e, à medida que esquece cada pedaço de si mesma, se torna cada vez menor, sentada lá na sua cozinha. Ela é raspada e esquece seu rosto, seus olhos, até que, por fim, não resta nada, senão seu coração, e então também o esquece e, portanto, flutua, inconsciente, livre e inteiramente inumana.

O conto aponta para a centralidade da memória no nosso sentido de o que significa estar vivo. ouvimos isso todo o tempo: a memória nos faz quem somos. Aqueles que esquecem o passado estão condenados a repiti-lo. A memória é narrativa, dando continuidade e significado às nossas existências. Somos, se não obcecados pela memória, pelo menos profundamente preocupados com ela." (p. 252)

"Kandel deve saber sobre os perigos associados à memória em excesso e, reciprocamente, da necessidade do cérebro humano de esquecer. Um dos pacientes mais famosos na literatura da neurologia foi um homem de 21 anos de idade, tratado por A. L. Luria. Aos 20 anos de idade, S. tinha uma lembrança tão vívida que você poderia apresentar a ele quatro colunas de números e, depois de apenas um relance, ele conseguia recitá-los para você. Luria testou S. durante anos e talvez mais assombroso tenha sido que, mesmo depois que muito tempo tinha se passado, S. conseguia se lembrar de cada coluna isolada; conseguia se lembrar dos arranjos precisos de palavras numa página; vinte anos depois, ainda conhecia cada reportagem, palavra por palavra, de todos os jornais impressos em sua província.

S., porém, tinha problemas sérios. Era incapaz de deduzir um significado de qualquer coisa que lesse. Bastava lhe mostrar A Odisséia e ele seria capaz de recitar o volume de mil páginas depois de olhar fixamente por seis minutos, mas não tinha a menor idéia do que significava. As pessoas zombavam dele porque era incapaz de ler expressões faciais. Tão preso ficava à minúscula mecânica de uma boca se movendo que não conseguia se afastar e ver - seria aquilo um sorriso ou uma expressão afetada? S. não conseguiu durante a sua vida imaginar como poderia resolver o problema. Nunca resolveu. S. viveu, estúpido e desorientado, mutilado por suas aguçadas capacidades." (p. 255-256)


Slater, Lauren. Mente e cérebro: dez experiências impressionantes sobre o comportamento humano. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

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